Escrita e livro – taxação e mercado. Palavras que, colocadas lado a lado, parecem não mostrar correspondência imediata. Mas é assim que se começa um texto. Justapõem-se palavras que, por sua vez, são uma justaposição de letras que forjam, no seu conjunto bem arranjado, um sentido.
As “belas letras” já experimentaram tempos melhores em nosso país. Muito embora sempre tenham se apresentado como signo elitista, cultuado por uma minoria letrada, era de bom tom saber falar, escrever, discursar. Tanto que palavras demais, floreios demais, jorravam das gargantas dos nossos ilustres políticos, ao mesmo tempo que ações para o bem público pouco se viam. Ficava-se nas elucubrações, nas falas intermináveis, termos difíceis, quase como se um discurso bonito fosse o suficiente para solucionar qualquer problema do país, independentemente do nível de profundidade exigido.
Era a crença no poder mágico das palavras. Mas, por mais que proliferassem em tons inflamados nos palanques, por mais que elas rendessem muitos apertos de mãos e tapinhas nas costas, recebidos por oradores com seus sorrisos nos lábios, aquelas palavras saíam e caíam em um imenso vazio, sem ecoar.
Literatura como missão
Outros senhores ilustres, amantes das “belas letras”, nossos primeiros intelectuais e escritores, acreditavam que por meio das palavras e, em especial, por meio da literatura, seria possível formar um país e um povo – coisa que estas terras, entendiam eles, estavam precisando. Nas mãos deles, as palavras eram a própria ação. À literatura, cabia a missão de expressar ou de refletir um país, seu povo e a ideia de nação.
Diferentemente do uso das palavras nos palanques, as palavras para os literatos não se encerravam ao ato de torná-las visíveis ou audíveis. Também eles acreditavam serem mágicas as palavras, mas somente aquelas que reverberassem, revolvessem, provocassem, criassem, traduzissem, refletissem, constituíssem realidades outras para o país. A escrita era um ato contínuo, angustiante, de virtude, luta, sonho e fé. Diz-se até que eram atos mais políticos que aqueles dos palanques.
Jorge Amado e a emenda contra à taxação do livro
Em um tempo em que escritores e intelectuais eram populares, engajados na ideia de melhorar o país, mesmo eles poderiam ser eleitos como legisladores. Nos idos da década de 1940, tivemos o escritor baiano Jorge Amado, na Câmara Federal, como deputado. É dele a emenda parlamentar, de 1946, que isenta os livros da taxação de impostos. Proposta que foi reafirmada na Constituição cidadã de 1988.
Esse era um momento de grande interesse nas discussões sobre o Brasil, provocado, principalmente, pelo nacionalismo do governo de Getúlio Vargas. Consolidar certa hegemonia a respeito da nacionalidade mobilizou estudiosos de diferentes áreas e se materializou em projetos editoriais significativos como a Coleção Brasiliana (1931), da Companhia Editora Nacional (de Monteiro Lobato), Documentos Brasileiros (1936), da Livraria Editora José Olympio, Biblioteca Histórica Brasileira (1940), da Livraria Martins Editora.
No entanto, é importante dizer que conhecer e pensar sobre o Brasil fazia emergir projetos múltiplos, divergentes e opostos que demonstravam a efervescência cultural, o surgimento das Universidades, o aumento de pessoas interessadas em estudar, discutir e projetar o país. Era tempo e momento de reivindicar liberdade de expressão para a diversidade. E os livros sempre estiveram no núcleo central desse florescimento: alimento, inspiração, base.
Mesmo antes disso, as principais iniciativas para “descobrir” e “definir” o Brasil estiveram ligadas a projetos editoriais, sempre, e fundamentalmente, atreladas à ideia de conhecimento, aperfeiçoamento e difusão do conhecimento.
Essa é uma das articulações possíveis para dar sentido à justaposição livro-escrita e taxação-mercado: o engajamento intelectual para melhorar o Brasil fez a diferença nessa relação. Jorge Amado, na sua atuação política, contribuiu para o surgimento de uma legislação favorável ao mundo editorial. Um mecanismo que não resolveria os problemas de letramento e acesso ao livro, mas que promovia o incentivo à proliferação e consolidação de uma cadeia econômica da produção criativa e intelectual do país. Fazia-se, assim, a articulação do livro com o mercado, por meio da legislação tributária.
Cada um na sua seara, escritores e intelectuais tentaram popularizar o conhecimento, promover a alfabetização, incentivar o acesso à leitura. A iniciativa de Jorge Amado, no entanto, evidencia a importância de um projeto ligado à cultura ser pleiteado por conhecedores da causa e da necessidade. Jorge Amado, com 33 anos, já era um escritor famoso, com relações com o meio editorial, que lhe ajudaram a apresentar a proposta. Estar no lugar certo para conceber, talvez, não o melhor projeto para o livro e a leitura no Brasil, mas um projeto possível, que fez toda a diferença nesses 70 anos de existência.
De lá para cá, nosso Legislativo não cultua mais as palavras, aliás, uma parte considerável dos eleitos mal sabe juntar um número ínfimo delas e, quando juntam, nem sempre o seu conjunto faz algum sentido. Ou pior, fazem sentido para defender ideias e ideais eticamente inaceitáveis. De lá para cá, não vemos escritores sendo eleitos e temos alguns poucos intelectuais que se arriscam, com vida curta, na política.
O país se fragmentou ainda mais e, na Babel do Brasil contemporâneo, poucos entendem ou se entendem.
E somente uma desconexão total com o passado, presente e futuro do país poderia gerar essa proposta de taxação de 12% na produção e circulação de livros. A justificativa, uma das frases mais preconceituosas e desesperançadas já ditas neste país: “pobre não lê livros”.
Uma desconexão que tem como subtexto: “ler para quê?”. Nas mentes dos tecnocratas de plantão, que não conhecem os processos ou o universo do livro e da leitura, a manipulação simples dos números é a resposta para o que eles não têm sensibilidade suficiente para entender, explicar ou fazer melhor uso (como no caso do uso dos números para subsidiar políticas públicas).
O aprendizado das primeiras letras, o impacto de um único livro ou de uma biblioteca pública na vida das pessoas são acontecimentos capazes de revolucionar uma existência. Mas de vida, essas pessoas que hoje ocupam os gabinetes pouco entendem. De revolução, então?! Não está bom como tá, dá pra piorar, isso dá, isso eles sabem fazer bem.
Novas Editoras
Vivemos em um período abundante na produção editorial. Todos os dias nasce uma editora nova, com novas ideias, interesses, sonhos, como nós, da Editora Tucum. Quase todas querendo contribuir de alguma maneira para o acesso à leitura, ao conhecimento, à diversidade. Quase todas com propostas inclusivas, dando voz às histórias silenciadas e vazão ao um reavivamento cultural. Saem das páginas impressas ou digitais diferentes sotaques e, talvez como nunca, tenhamos a oportunidade de conhecer o Brasil. Um conhecimento ou reconhecimento desta vez tornado viável não apenas pela pequena elite branca letrada, mas pela multidão de penas e vozes que emergem de corpos de múltiplos tons.
Esse novo colorido que anima a cena do mundo editorial, muito provavelmente, teria maior dificuldade de aparecer, não fosse o número significativo de políticas públicas inclusivas que mudaram a face do país e revolveram as suas entranhas. Impossível deixar de mencionar também a vivacidade dos projetos culturais que pululam nas periferias e pequenas cidades, muitos deles ligados à circulação e práticas de leitura.
É preciso plantar, Amado plantou, as políticas públicas inclusivas germinaram, as pessoas floresceram.
A taxação de livros parece aqueles venenos para ratos, não basta matar, tem que exaurir, secar. Parece que tem gente lá que não gosta das flores.
Isto faz pensar que quem nada sabe sobre as sementes, não planta, não cultiva, não colhe, não compartilha, não usufrui, não permite ao outro a experiência da expressão e da fruição.
As palavras são trocadas por números e, enquanto os brasileiros forem somente números, não teremos políticas públicas que deem conta das necessidades humanas essenciais.
Eles querem deserto, aridez. Nós respondemos com floresta, terra úmida e fértil. E com palavras, belas, vivas e revolucionárias palavras.